Poze do Rodo, Bíblia e o limite entre arte e apologia
A dificil discussão sobre onde acaba o relato artístico do crime e onde começa a propaganda sobre o que é imoral
Toda a polêmica envolvendo o funkeiro Poze do Rodo, que foi preso recentemente, sendo acusado de apologia ao crime, traz uma boa oportunidade para discutirmos onde acaba a exposição artistica do “personagem criminoso” ou até mesmo o relato crônico do crime e onde começa, de fato, o incentivo e a romantização daquilo que é ilegal e/ou imoral.
Digo isso porque, realmente, muito se confunde a crônica sobre o crime e a romantização do crime.
Mesmo entendendo quão tênue é essa linha, o que eu chamaria de “crônica sobre o crime” é o relato sobre o crime ou o criminoso: suas ações, motivações, contextos que o levaram a defesa e a prática da atitude criminosa.
Isso, claramente, não é apologia. Pelo contrário: quando lemos ou assistimos filmes como “O Poderoso Chefão”, “Taxi Driver”, “Coringa” ou quando ouvimos músicas como “Eu Sou 157”, dos Racionais MC’s, fica bem claro que, apesar do narrador apresentar o crime, o criminoso e as motivações, o objetivo dessas obras é provar que o crime não compensa.
Michael Corleone e o personagem de “Eu Sou 157” pagam, de maneira trágica, pelas suas escolhas imorais. E se, em “Taxi Driver” e em “Coringa”, fica parecendo que o vilão foi glorificado, o que podemos entender nas entrelinhas é que o autor está criticando o mundo que, no fim, glorifica vilões como se fossem heróis. Histórias conduzidas de maneira mais sutil, é verdade. Mas a mensagem está lá. E não é obrigação do artista finalizar sua obra com um disclaimer escrito “O CRIME NÃO COMPENSA”.
A Bíblia é outra que sofre. Por descrever vilões e vilanias, há muitos que querem entender seus textos como uma espécie de passagem de pano para atitudes imorais. O livro de Samuel, por exemplo, relata a relação entre Davi e Bateseba, que passa longe de um amor proíbido, beirando os limites do abuso sexual entre um chefe de estado e uma mulher que, diante do assédio do mandatário nacional, não teria como recusar o “convite”.
Enquanto críticos — sedentos por encontrar contradições no texto bíblico — usam o trecho para criticar o fator divino dos textos ou até mesmo o Deus que teria permitido tudo isso, religiosos utilizam a passagem como uma bela “passada de pano”: afinal, se até Davi, o “homem segundo o coração de Deus”, cometeu seus “deslizes”, quanto mais nós, mortais. Daí o eufemismo abre portas, ou melhor, fecha as portas sobre todo o tipo de abuso que vemos em igrejas cristãs ao redor do mundo.
Ambos entenderam o texto errado, óbvio. Basta continuar lendo o Livro de Samuel para ver como, na figura do profeta Natã, a atitude de Davi é reprovada por Deus — e será que figura usada pelo profeta, de um homem que toma para si o que não é seu não pode ser tomado como a “opinião divina” para um caso de abuso? —. E basta continuar lendo para ver a derrocada do nobre Davi até o seu completo arrependimento, e aí veremos que homens passam pano para homens abusadores; a Bíblia, não.
Agora, sobre o Poze do Rodo: se ele apenas cantasse sobre o dia a dia de membros de facções criminosas, poderia ser encaixado, com facilidade, no rol das crônicas da vida criminosa, um documento que relata aquilo que livro nenhum relata. Mas o fato de ele cantar suas crônicas em shows cercados de criminosos, em áreas dominadas pelos criminosos, onde você, como artista, sequer pode adentrar se não ficar claro que você demonstra algum apoio ao poder dominante, certamente é um ponto que depõe contra o funkeiro.
Mas, para não dizer que não falei das flores, também é um ponto contra o vício que nosso sistema têm em agir com mão forte, dependendo da cor da pele e/ou da origem dos ditos envolvidos, enquanto age de maneira muito mais branda contra os poderes dominantes que financiam e preservam o ambiente que propicia crimes.
Quem gosta das comédias dos anos 1990, vai lembrar da “Teoria da Investigação de James Carter”, em A Hora do Rush 2 (2001):
“Siga o ricaço branco […], por trás de todo grande crime, sempre tem um homem branco esperando a sua parte do dinheiro” - A Hora do Rush 2 (2001)
Mas tanto aqui quanto nos States, a lógica é sempre a mesma: a gente da a investigação por encerrada sempre que o primeiro preto é algemado, enquanto o “ricaço branco” continua muito bem escondido, esperando a parte dele da grana, devidamente lavada.
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